Perdida na História

Perdida na História

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"Titulus regius", Blaybourne e o Mistério Tudor

  E se Elizabeth I, uma das maiores rainhas de todos os tempos, não fosse uma verdadeira herdeira ao trono inglês? E se Henrique VIII, seu pai, não fosse o verdadeiro herdeiro de Inglaterra? E se todos os actos de ambos fossem inválidos, visto nenhum ser o verdadeiro sucessor? E se toda a linhagem Tudor fosse uma mentira? Tudo começou com Cecily Neville.

A Peregrinação da Graça
    Yorkshire, 1536. Começa uma revolta popular que ficaria na memória de todo o povo do Norte de Inglaterra: a Peregrinação da Graça (ou Pilgrimage of Grace). No Sul, Henrique VIII leva a cabo a sua Reforma contra a Igreja Católica: após o seu casamento com Ana Bolena, o rei torna-se o centro de toda a religiosidade, torna-se a “vontade de Deus”, a “manifestação de Deus em Inglaterra”.
    O que de facto se verificava até então era um certo abuso por parte da Igreja Católica, quer a nível de riqueza, quer ao nível de como conseguia essa riqueza. Ao ser banida de Inglaterra, a Igreja sofre um estrondoso golpe: a dissolução dos Mosteiros e Igrejas, a destruição das “relíquias”, santos e outras estátuas, tudo isso terá, efectivamente, rendido à Coroa muitíssimo dinheiro e posto a nu muitas situações irregulares e escandalosas que aconteceram em alguns mosteiros e conventos. Se por um lado é verdade o que afirmavam contra a Igreja, é também verdade que esta Reforma não foi menos violenta: a fogueira e a tortura continuaram a ser muito usadas, mas agora contra os novos hereges: os católicos.

    Ora, o Norte de Inglaterra não aceitou de forma alguma esta Reforma. De facto, o Norte há muito que não era tido em consideração na governação do reino. O reino era Londres. O próprio clima, impostos e outros actos faziam desta zona de Inglaterra algo marginal, o povo sofria sem que houvesse qualquer comparação com o Sul. Assim, é desta forma que mais uma vez o rei ofende o povo do Norte: muitíssimo católico, com a devastação dos mosteiros e igrejas, o Norte fica cada vez mais pobre, sem interesse. Uma região do reino à parte. O Norte odiava profundamente este rei. Aliás, o Norte sabia ter motivos para não aceitar nenhum rei vindo da casa Tudor.


    Este é o palco para a Peregrinação da Graça. Antes deste grande e sangrento levantamento, muitas outras rebeliões do Norte, tiveram lugar: primeiro em Lincolnshire, depois em York, onde se fez mais sentir.

Robert Aske

     Aske era o filho mais novo de Sir Robert Aske de Aughton, perto de Selby, descendente de uma velha família de Yorkshire. Aske tornou-se advogado, tendo sido um Fellow em Gray's Inn. Um homem devoto, opôs-se às reformas religiosas de Henrique VIII, principalmente à Dissolução dos Mosteiros. Quando a rebelião eclodiu em York contra Henrique VIII, Aske estava de regresso a Yorkshire, vindo de Londres. Inicialmente não envolvido na rebelião, veio depois ele próprio a assumir a causa.
    No dia 10 de Outubro, para sua desgraça, Aske foi declarado o “Comandante – chefe de toda a peregrinação”. A maioria de Yorkshire, assim como algumas partes de Northumberland, Durham, Cumberland e Westmorland estavam em revolta.

Estátua de Robert Aske


    Após conversações com o duque de Norfolk (tio da Rainha Catherine Howard), Aske recebe a garantia de uma audiência e de passagem segura para comunicar com sua Majestade, o rei. Apesar de tal ter acontecido, ao voltar para York a revolta volta a eclodir. O rei muda de ideias. Robert Aske é prontamente levado para a tenebrosa Torre de Londres, onde é condenado e levam-no de volta para York, desta vez, para a prisão.

    A sua acusação era de traidor. Curiosa é mesmo a forma como cumpriu a sua pena: penduraram-no numa corda do alto da Torre de Clifford, estirado e esquartejado, tal como era costume para os traidores – não – nobres. De facto, o rei afirmara que Aske haveria de morrer muito antes de perder a cabeça. Aske demora dias a morrer. Ali fica pendurado, já como esqueleto, durante muito tempo, com o intuito de relembrar ao Norte qual a consequência para a traição. Aske fica na História como o símbolo da Peregrinação da Graça.

    O que na verdade poderá estar por trás desta forma horrenda de pena seria o segredo partilhado por Aske e por todos os conspiradores do Norte: Henrique VIII, o seu pai Henrique VII e toda a descendência Tudor seriam falsos reis. As provas existiam.


Regresso ao passado: Ricardo III



(a genealogia não está totalmente completa, clicar para ampliar)

    Eduardo IV morre inesperadamente no dia 9 de Abril de 1483. O seu filho e herdeiro, Príncipe Eduardo de Gales estava em Ludlow. As notícias chegaram a Ludlow apenas cinco dias depois. Por outro lado, as notícias terão também chegado a Ricardo de Gloucester, em Middleham, ao mesmo tempo. Ricardo de Gloucester (irmão do rei defunto) é nomeado regente da coroa e protector do jovem rei e do seu irmão de 9 anos Ricardo, o Duque de York. 


Ricardo III

    As disposições testamentárias de Eduardo IV não são recebidas como boas notícias, principalmente pelos Woodville (os parentes da rainha consorte) que receavam ver a sua posição desprotegida. Baseado em factos consistentes ou não, Ricardo foi avisado por Lord Hastings de uma tentativa para o isolar dos sobrinhos e afastar do poder. O Duque de Gloucester insurgiu-se depressa. Enquanto Eduardo V regressava de Gales acompanhado pelo tio materno Anthony Woodville, Ricardo interceptou o cortejo e mandou prender e executar Woodville e outros membros da família, por alegada tentativa de assassinato.
     A 22 de Junho de 1483, Ricardo de Gloucester faz ler uma declaração sua, em que anuncia a sua intenção de se tornar rei.

     Qual a sua fundamentação? 

     Ricardo chama a atenção para o facto do casamento do seu irmão, Eduardo IV, com Elizabeth Woodville ser falso e Eduardo ter sido bígamo. Ou seja, Eduardo IV teria um pré-contracto de casamento com uma outra mulher, possivelmente Eleanor Butler, o que faria com que o seu casamento com Elizabeth Woodville fosse falso e que todos os filhos daí existentes, nenhum teria direito ao trono.



Elizabeth Woodville  

    Esta teoria era fortemente apoiada pela “Grande Crónica”, por Polydore Vergil, assim como, pelo famosíssimo humanista Thomas More, grande personalidade do reinado de Henrique VIII.  Segundo conta a História, as provas apresentadas por Ricardo eram fortíssimas, de tal forma que o Parlamento, após as analisar, emitiu um documento designado por Titulus regius. Neste documento, o Parlamento afirma claramente que o verdadeiro e legítimo herdeiro é, e apenas pode ser, Ricardo de Gloucester, sendo coroado como Ricardo III.

     Porquê Ricardo? É efectivamente curioso. Anos antes, em 1478, o irmão de Eduardo IV (e de Ricardo), Jorge (duque de Clarence) é mandado executar por traição, exactamente por tentar depôr o irmão e tomar o poder com uma rebelião.

Jorge, duque de Clarence



    Um outro facto de toda esta história reside também nos chamados “Principes da Torre”. Após a subida ao poder de Ricardo III, os filhos de Eduardo IV (Eduardo V e Ricardo) simplesmente desaparecem.



Principes da Torre


     Há registos da presença de ambos os príncipes nos jardins da Torre de Londres, mas todos os relatos acabam após o verão de 1483. O destino das crianças permanece por esclarecer, presumindo-se que tenham morrido de fome ou que tenham sido assassinados na torre. Não existe igualmente qualquer registo ou documento acerca do funeral. Em 1674, durante um reforma na Torre, encontraram-se dois esqueletos nas escadas da capela e por ordem real, foram sepultados na Abadia de Westminster, acreditando-se serem os príncipes. Em 1933 procedeu-se à exumação dos corpos; porém, não se chegou a qualquer conclusão.

Casamento útil

Além dos Principes da Torre, Eduardo IV tivera também uma filha, Isabel de York. Casado com Isabel estava Henrique Tudor, um grande defensor da legalidade do casamento de Eduardo IV com Elizabeth Woodville. Obviamente esta busca pela legalidade estava interligada com o seu casamento, visto que, com o desaparecimento dos Principes da Torre, seria Isabel de York a real herdeira ao trono e, por conseguinte, Henrique Tudor.

Henrique VII


     Em 1485 Henrique Tudor defronta numa batalha Ricardo III que, após alianças imprevisíveis do seu adversário, vê quase metade do seu exército desertar. Ricardo III morre em batalha, sem herdeiros. Esta batalha, a Batalha de Bosworth Field foi a última da guerra das rosas (ver neste blogue a “Guerra das Rosas”). A morte de Ricardo leva à subida ao trono de Henrique Tudor, agora Henrique VII, dando-se inicio à dinastia Tudor.

Água Tumultuosas

    Vendo bem a situação, a ser verdade todo o conteúdo do documento Titulus regius, Henrique VII sobe ao poder de uma forma falsa, visto a rainha sua esposa, Isabel de York, não ser também ela legítima.
    No entanto, Henrique leva a cabo uma acção de uma eficácia espantosa: todos os documentos, todas as cópias de Titulus regius são mandadas destruir. Este Acto do Parlamento de Londres, na realidade, não existe nos dias de hoje. Henrique VII ordenou que jamais alguém pudesse ler o documento antes de o queimar. O que se presume, é que nenhuma cópia tenha sobrevivido até hoje, nem no Parlamento, nem em nenhum dos Colégios de Advocacia inglês. Tornou-se um documento herege.

    É também de ressalvar que era de todo o interesse de Henrique VII que os cunhados, os Príncipes da Torre, nunca mais aparecessem, figurando também ele como possível culpado pelos assassinatos das crianças.

    Porém, não seria só neste documento que Aske e os conspiradores do Norte se baseavam para tanto odiarem quer Henrique VII, quer Henrique VIII. Apesar de na altura de Aske (1536) o documento já ter sido destruído há muitas décadas, houve na altura de Titulus regius uma confissão que terá abalado o reino.


Cecily Neville



     Após a morte de Eduardo IV, seu filho, há provas de que Cecily Neville tenha feito uma declaração espantosa na Corte. Esta duquesa de York declara por sua honra em como Eduardo IV era seu filho, mas não de seu marido.

     Efectivamente, rumores na corte francesa apoiavam esta confissão, identificando o pai de Eduardo IV como um arqueiro inglês Blaybourne. A obra Bosworth 1485, de Michael Jones, relata a história.

    Por incrível que possa parecer, a dinastia Tudor não deveria ter direito ao poder por duas vias: primeiro devido ao documento Titulus regius, onde é provada a ilegitimidade dos filhos de Eduardo IV; por outro lado, nem o próprio Eduardo deveria ter sido rei, visto também ele ser ilegítimo.

    Se poderá ser verdade que deverão haver detalhes falsos, a história em si tem fundamento. O próprio ministro Thomas Cromwell tinha conhecimento, tendo mesmo sido interrogado pelo embaixador espanhol Chapuys, em 1535.

    Devido a uma coisa ou a outra, o que é facto é que, já no reinado de Henrique VIII, se tomam medidas para acautelar qualquer tentativa de subida ao poder dos outros familiares: Margarida, a condessa de Salisbury, é levada para a Torre e, sem julgamento, é executada.

    Actualmente, um documentário controverso do Channel 4, Britain’s Real Monarch (2004) leva a investigação ainda mais fundo, testando e estudando toda a genealogia que deveria então ter reinado. A equipa de investigação localizou o homem que na actualidade seria o legítimo rei, caso as afirmações de Cecily fossem certas. É um afável criador de carneiros, republicano por convicção e o seu nome deveria constar na História como Miguel I, rei de Inglaterra.

Fontes:
C.J.Sansom, O Soberano – intriga na Corte (2008), Asa
http://www.genealogy4u.com/genealogy/getperson.php?personID=I75456&tree=western2007

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